sexta-feira, 30 de abril de 2010

"As pessoas acham que os gays não têm família"

Fonte:
REVISTA ÉPOCA
09/08/2009 - 11:07 - Atualizado em 09/08/2009 - 11:07

"As pessoas acham que os gays não têm família"

Ben Cartwright luta pelos direitos dos gays nos EUA há 12 anos. Ele fez parte de um documentário que discute a lei que permite aos homossexuais servir o exército, e a situação de seus parceiros
Ricardo F. Santos

ATIVISMO
Cartwright luta para revogar a lei que o faz se esconder

Ben Cartwright, 29, orienta líderes estudantis na Universidade de San Diego, Califórnia, nos EUA. Ele luta pelos direitos gays há doze anos, escreve para um jornal gay local e é parceiro de um membro do exército. O documentário “Silent Partners” (Parceiros silenciados), do qual participa, estreou no mês passado nos EUA, e aborda a questão dos parceiros de militares, que são obrigados a se ocultar parcialmente para não prejudicar seus cônjuges. A primeira frase do filme indica o que acontece se um membro do exército for descoberto: “A pessoa que eu amo pode ser demitida desonrosamente por me amar de volta”.

Cartwright participa de movimentos para revogar a lei “don’t ask, don’t tell” (algo como “não pergunto, não me fale”), aprovada em 1993, nos EUA. A norma permite aos homossexuais servir o exército. Porém, para isso, eles não podem revelar sua sexualidade, porque alega-se que isso poderia “pôr em risco a coesão da unidade”. "Queremos revogar a lei 'don’t ask, don’t tell', e acabar com o banimento dos gays no exército", afirma Cartwright em entrevista a ÉPOCA.

ÉPOCA – Quando você começou a se interessar pelos direitos dos militares gays?Ben Cartwright – Comecei a pensar nisso recentemente, há cerca de quatro anos, principalmente por causa do meu parceiro, que é militar. Ele me fez ver como essa política afeta as pessoas negativamente, e comecei a falar do assunto porque me afeta de maneira direta.

ÉPOCA – Como foi sua participação no documentário? Cartwright – A companhia que fez o filme me contatou por meio das lideranças em San Diego. Eu achei ótimo ter participado, fiquei muito satisfeito de poder estar em um projeto desse. É um documentário realmente poderoso, e desde que foi lançado, foi visto por um bom número de pessoas, vários jornais do país deram notícias sobre ele, e até alguns jornais militares o comentaram.

ÉPOCA – Como foi a reação das pessoas no país? Cartwright – Eu sei que a comunidade gay reagiu muito positivamente ao documentário, por causa do Facebook, do MySpace e essas ferramentas on-line. Tem sido muito fácil às pessoas para assisti-lo, e também comentá-lo, e por esses comentários eu sei que estão gostando. Eu até recebi um e-mail de um membro gay do exército que me agradeceu por ser uma voz por eles, porque obviamente os militares não podem falar disso. Por não estar no exército, por ser um civil, eu posso falar o que quiser, e ser uma voz por eles. É claro que quem apoia os direitos gays apoia o documentário. Mas eu não fiquei sabendo de nenhum mal-estar, não ouvi nenhuma reclamação. Eu queria que as pessoas abrissem os olhos, que pensassem sobre o alcance da [lei] “don’t ask, don’t tell”. Eles sabem que a lei afeta os militares, que têm que ficar quietos sobre quem são, mas não pensam sobre o lado da família. Agora estão pensando “Sim, é verdade, os gays têm família também, que não recebe nenhum daqueles benefícios”. Recebi e-mails de gente zangada com essa política, que não devíamos tê-la. Os Estados Unidos não são o país mais livre do mundo?

ÉPOCA – Quando a lei foi aprovada? Cartwright – Ela foi aprovada em 1993, na gestão de Bill Clinton. E o senador que efetivamente redigiu a lei emitiu uma nota, creio que no ano passado, dizendo que acreditava que a lei era um erro, que ele acha que ela deveria ser revogada. O senador que a escreveu disse “Espera aí, foi um erro que eu cometi 15 anos atrás, precisamos mudar isso”. Até o autor pensa isso da maldita lei.

ÉPOCA – Antes dela, nenhum homossexual podia servir o exército? Cartwright – Exato, sempre foi a política do exército, gays e lésbicas não podem fazer serviço militar. Mas essa ainda é a política vigente, a diferença é que puseram uma cláusula que diz que se você não contar, eles não perguntarão. Mas você ainda não pode servir o exército se você for gay, porque se eles descobrem, você cai fora, pode ter certeza.

Você ainda não pode servir o exército se for gay, porque se eles descobrem, você cai fora.

ÉPOCA – Quando se descobre que alguém é gay, ele enfrenta uma “demissão desonrosa”? Cartwright – Sim, você é demitido desonrosamente. A pessoa normal, que serviu por alguns anos, será demitida honrosamente, recebe medalhas e um certificado. Mas se você é demitido desonrosamente, você basicamente vai pro olho da rua, como se tivesse sido demitido de um trabalho. E se você é demitido, não vai colocar no seu currículo. Você não vai procurar um emprego dizendo “Ah, eu estive no exército mas me mandaram embora”. Isso arruína sua vida, arruína seu currículo.

ÉPOCA – No documentário afirma-se que há aproximadamente 65 mil gays e lésbicas na ativa. Você já viu esse número? Cartwright – Bom, é uma grande suposição, é claro que não existe maneira de saber o número real. Na ativa, creio que há meio milhão de pessoas, um pouco mais. Eu não sei como eles chegaram a esse número, é uma estimativa de quantos gays e lésbicas há no exército... Mas há muitos.

ÉPOCA – Você afirmou no filme que quando algum colega militar do seu parceiro vem buscá-lo em casa, você tem que esconder tudo que diz respeito aos dois, e inclusive se esconder também. Você já passou por alguma situação difícil por isso, já esqueceu alguma coisa? Cartwright – Não, nós nunca fomos pegos. Mas houve uma vez em que um colega dele foi em casa e, eu rio agora, mas eu esqueci de esconder duas fotografias que estavam em cima do piano. Quando me dei conta, comecei a pirar, porque eu tinha ido me esconder na casa de um amigo, e fiquei rezando para o colega dele não notar os retratos. Por sorte, ele não viu as fotos, aliás ele acabou nem entrando no quarto, mas eu fiquei assustado, ligando para o meu namorado, com esperança de que ele atendesse, mas ele não atendia porque estava conversando com seu colega... Por sorte nada aconteceu, mas foi assustador. Eu ter que esconder os retratos na gaveta é ridículo. Só o fato de eu ter de me preocupar se minha foto está visível ou não é uma coisa ridícula.

O fato de eu ter de me preocupar se minha foto está visível ou não é ridículo.

ÉPOCA – Como é a situação hoje dos parceiros de militares gays, como vocês se sentem? No documentário é dito que quando eles vão servir no Iraque ou no Afeganistão, vocês não podem nem ir ao aeroporto despedir-se porque seria arriscado. Cartwright – Sim, sim, seria muito arriscado, porque no exército existe homofobia demais, é incrível o quanto de gente que odeia os gays. E se esses caras, seus amigos, se apenas vissem meu parceiro com alguém como eu... isso levantaria muitas questões para ele. “Por que tem um ‘cara’ com você?” Eu não pareço nada com meu namorado. Ele tem ascendência mexicana, e eu sou branco de ascendência europeia; eu sou loiro, ele tem cabelos pretos. Então se eu fosse me despedir dele, ele não poderia dizer que eu era seu primo ou algo assim. Eu não pareço com ninguém de sua família, isso causaria perguntas, ele seria ridicularizado pelos amigos, seria muito difícil para ele. Então é melhor eu nem estar lá, porque ele não precisará responder a todas essas questões. Enquanto ele está viajando, você tem que tomar muito cuidado com o que diz. Digo, ele é livre para me ligar quando quiser, mas nunca se sabe, porque os militares têm o direito de ouvir qualquer ligação telefônica, e seria bem estranho se ele estivesse conversando com outro homem e dizendo “Eu te amo”. Por isso, começamos a ser muito cautelosos com o que dizíamos ao outro, as conversas pelo telefone tinham que ser... 'sanitarizadas', não podíamos dizer “Eu te amo”, não podíamos abrir nossos sentimentos. Tudo tinha que ser meio autocensurado.

ÉPOCA – Cartas e e-mails podem ser trocados livremente? Cartwright – Sim, podemos trocar isso também, mas, de novo, é tudo autocensurado. Eu não posso mandar um cartão dizendo “Eu te amo”, os militares têm o direito de abrir as cartas. E, sabe, não tem nada de errado nisso, porque eles abrem as cartas por razões de segurança. Mas se eles abrissem suas cartas e vissem "Eu te amo. Com amor, Ben", sabe, meu nome é o nome de um cara. Se fosse lido, ele estaria encrencado. Então, quando eu mando cartas a ele, não coloco meu nome, só coloco a letra B para ele saber que sou eu, e, caso alguém veja, ele possa falar que é alguma Betty ou algo assim. Mas é bem difícil, não dá para expressar os sentimentos do jeito que se quer.

Se abrissem suas cartas e vissem "Eu te amo. Com amor, Ben", ele estaria encrencado.

ÉPOCA – O que vocês estão tentando modificar nos direitos dos militares gays? Cartwright – O que eu e outros ativistas estamos tentando mudar é, basicamente, revogar a lei “don’t ask, don’t tell”, e acabar com o banimento dos gays no exército. Só queremos os plenos direitos que todos têm, queremos que os gays possam servir o exército sem a ameaça de serem descartados por causa do que são. Não existe outro trabalhador nos Estados Unidos a quem é permitido discriminar seus funcionários por sua orientação sexual. Você não pode, nos Estados Unidos, demitir alguém porque esse alguém é gay, não é permitido, é contra a lei. Mas os militares podem fazer isso. Nem no governo federal eles discriminam, eles não podem demitir as pessoas porque são gays. Então o que queremos basicamente é a lei “don’t ask, don’t tell” revogada. Queremos que os gays possam servir o exército abertamente. Nada menos que isso. Essa lei tem um alcance muito maior do que as pessoas imaginam. Eles pensam que é para proteger os gays, mas... Os gays têm família, os gays têm vida, e a lei afeta muitas pessoas além dos membros do exército. E é 2009, os EUA supostamente são o país mais livre do mundo e temos uma política como esta, enquanto outros países não têm. Estamos com esperança de que o presidente Obama realize sua promessa de campanha de derrubar a “don’t ask, don’t tell”, porque quando ele assumiu, ele prometeu isso. Estamos torcendo para que ele mantenha sua palavra por nós.

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