segunda-feira, 12 de julho de 2010

O Cartório Colorido

O Cartório Colorido

Com vinte escrituras homoafetivas por mês, tabelionato cai nas graças dos gays

Fonte: Revista Veja São Paulo

Publicado em 28/06/2010

Quem entra no 26º Tabelionato de Notas, em um prédio comercial na Praça João Mendes, no centro, pode pensar que se trata apenas de mais um estabelecimento do gênero: tem luz fria, guichês e um incessante vaivém de pessoas carregando papeladas. Isso até chegar à sala de Paulo Roberto Gaiger Ferreira, decorada com duas telas da artista plástica Maria Tomaselli. É dali que despacha o tabelião gaúcho de 49 anos, casado com uma publicitária e pai de três filhos, responsável por transformar o lugar em referência para a turma do arco-íris. Todos os dias, o escritório recebe pelo menos três ligações de homossexuais interessados em detalhes sobre a Escritura Pública de Convivência Afetiva, cujo objetivo é oficializar o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo. "Viramos uma grife no que diz respeito ao assunto", conta ele. Vários tabelionatos do país se recusam a fazer esse contrato com receio de ir contra a Lei nº 8935/94, que tem um artigo que proíbe lavrar documento contrário à moral e aos bons costumes. Isso, evidentemente, varia de interpretação para interpretação. No primeiro trimestre deste ano, foram lavrados no 26º Tabelionato 69 escrituras de relacionamentos homoafetivos - 70% entre pares masculinos. "Elas são o amparo judicial que garante os direitos desse público."

Foi por isso que o geógrafo Alexandre dos Santos procurou o tabelionato. Dividindo o teto e as contas há três anos com o seu parceiro, o agente comunitário de saúde Vagner Leite, faz um ano que ele tenta incluí-lo como beneficiário do plano de saúde da empresa onde trabalha. "Agora, meus direitos devem prevalecer", afirma. A dupla assinou o contrato no dia 2 deste mês. "Demos uma festinha em casa para comemorar ao lado de amigos e parentes." Juntas há seis anos, a advogada Hanna Korich e a editora Laura Bacellar formalizaram sua história de amor em 2008. O objetivo era definir temas como partilha de bens e herança. "Entre outras coisas, o registro zela por nossos interesses em situações de separação e briga com familiares", explica Hanna. Embora 90% dos casos lavrados sejam entre paulistanos, há demanda de clientes de estados como Pernambuco, Mato Grosso do Sul e do Distrito Federal.

O "noivo" mais famoso que já esteve no tabelionato é o estilista Alexandre Herchcovitch. Em julho do ano passado, o titã da moda paulistana formalizou seu relacionamento com o também estilista Fábio Souza, dono do brechó À La Garçonne, em Pinheiros. Há três anos juntos, o casal discreto abre exceção no que diz respeito à escritura. "Divulgar nosso caso é um ato político, pois até poucos anos atrás fazer esse documento era impossível", afirma Souza. Entre os fatores positivos apontados pelo casal está a diminuição da burocracia. "As vantagens vão desde ter o mesmo plano de saúde até poder registrar em nome dos dois um filho, caso algum dia adotemos uma criança."

No Brasil, tanto o casamento quanto a união civil não são permitidos entre pessoas do mesmo gênero. "A diversidade de sexos é o requisito essencial de ambos", informa Adriana Galvão, presidente do Comitê de Estudos da Diversidade Sexual e Combate à Homofobia da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil. "A escritura se torna ainda mais importante para o casal gay provar a convivência e o patrimônio conquistado." Ainda que informalmente muitos a chamem de "união" ou "casamento", na prática ela vale como documento jurídico - não como estado civil. "Mas, entre amigos, tudo bem um chamar o outro de marido", diz Adriana.

O contrato pode englobar cláusulas pertinentes ao regime de bens, à herança e até indicar o responsável pelo poder de decisão em casos de ortotanásia (suspensão do tratamento de vítima de doença incurável). "Criar documento não é igual a preparar cheeseburger", compara o tabelião Ferreira. Se duas pessoas o procuram apenas para pôr no papel o tempo de convivência, podem sair de lá com o documento em menos de trinta minutos. Mas o processo pode durar um mês se incluir mais cláusulas. Entre os gays, 60% preferem adotar a comunhão parcial dos bens, 30% querem a separação total e 10% optam pela comunhão universal, segundo dados do 26º Tabelionato.

Para oficializar o relacionamento homossexual, paga-se uma taxa de 252,11 reais. Esse valor dobra se o casal quiser que, digamos, a hora do "sim" seja em outro lugar, como um bufê. "A partir de julho, vou servir taças de champanhe e bem-casados", promete o tabelião. Detalhe: nem todos os que se declaram marido e marido ou mulher e mulher se assumem publicamente. "Muitos querem seus direitos garantidos, mas sem fazer questão de alardear a orientação sexual."

A DEMANDA DO 26º

3 ligações de casais homossexuais atrás de detalhes sobre a Escritura Pública de Convivência Afetiva são recebidas por dia

20 contratos entre pessoas do mesmo sexo são oficializados todos os meses

70% das escrituras tratam de casais masculinos

252,11 reais são cobrados para oficializar o relacionamento

504,22 reais é a taxa para os que quiserem assinar os papéis em bufês e afins

 

Fonte: Revista Veja São Paulo

Publicado em 28/06/2010