quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Homossexualidade e Família

Homossexualidade e Família

A família é, sem sombra de dúvidas, o contexto primeiro de nossa construção identitária. É o contexto onde se dá nossos primeiros processos de socialização, os primeiros passos para nosso  desenvolvimento enquanto pessoa e cidadão. Em geral é na família que aprendemos e constituímos nossa personalidade, através da assimilação de valores, crenças e modos de se comportar. Família essa que não se constitui apenas de pai, mãe e irmãos biológicos (família nuclear), incluindo também todo tipo de cuidadores, de educadores, de pessoas que nos ajudam a dar nossos primeiros passos na vida, nos ensina a falar, comer, nos vestir, caminhar.

Creio que um dos principais dilemas do homossexual em se "afirmar" como tal é o ter de se assumir diante da família, em busca de aceitação e apoio. Aceitação e apoio é o que espera, para que possa continuar caminhando e vivendo, enfrentando desafios e dilemas no mundo, nos outros contextos sociais. A "família ideal" é aquela onde encontramos apoio e confirmação, onde somos aceitos como somos, onde encontramos forças para continuar vivendo e crescendo. A "família real", no entanto, nem sempre condiz com essa expectativa, constituindo-se também como um contexto de desafios e embates que, nem por isso, deixam de ter uma função de crescimento e aprendizado.

Em minha experiência clínica, no atendimento tanto de homossexuais como heterossexuais, me deparo pessoas que vivenciam cotidianamente conflitos familiares, que sentem o peso da falta ou do excesso de carinho, proteção, cobrança, etc, etc… Me dou conta de que não existe família perfeita. Todas as famílias são imperfeitas, assim como todos nós somos imperfeitos, frutos dessas famílias. Somos imperfeitos pois estamos sempre diante de impasses e dilemas e conflitos que nos requerem capacidade de adaptação e ajustamento, que nos obrigam a viver de forma dialética, negociando, fazendo escolhas e concessões, respeitando diferenças e tentando exercer a auteridade. A família é o outro que nos constitui e é constituída por nós. Ela nos cria através de seus ensinamentos, expectativas e vivencias, e se constitui por nós, por nossas ações e presença, e em nós, nos sentidos e significações que criamos dela.

Na família descobrimos os papéis de menino e menina, homem e mulher, pai, mãe, irmão, irmã, filho, filha… todos com seus respectivos repertórios correspondentes. Na família se configura as primeiras classificações e divisões de ocupação, os lugares de ser no mundo.  Entretanto, na vida, descobrimos que esses lugares não são fixos, e podemos transitar em diversos papéis, senão inteiramente, parcialmente. Os rótulos identitários não são mais tão rígidos, embora permaneçam como referenciais, como um modelo, um esquema básico, que nos ajuda a compreender um ordenamento do que seria uma "família".

Assumir-se homossexual significa colocar em cheque algumas crenças em relação ao que "é" do homem e da mulher, o que é do esperado no ciclo "natural" da reprodução da vida – nascer, crescer, (casar), procriar, envelhecer, morrer -, ao que se espera sexualmente desses dois pares de papéis sociais sexuais. Assumir-se homossexual é romper, pelo menos provisoriamente, com o ideal de perpetuação de uma família constituída por pai, mãe, filhos. É romper com a concepção de casal constituído por homem e mulher, e com seus complementares passivo-ativo, caçador-coletor, matrizes arcaicas da socialidade. Essa compreensão de família que tem como fim a reprodução da espécie é posta em cheque, apontando-se para a "desnaturalização" do humano, para sua condição como ser de cultura e vontade, capaz de transgredir e reformular os modos de vida.

Afirmar-se gay ou lésbica é dizer, a princípio, que não viverá segundo o natural e o convencional, que irá experimentar uma forma nova de casamento e família, que não a esperada. Sim, experimentar uma nova forma de casamento e família.  Pois casar e constituir família não significa que os pares sejam de sexos diferentes. A matriz dessas duas instituições são – ou deveriam ser – o amor, o companheirismo, a aceitação e o apoio mútuo. Para se constituir um casal é necessário esses elementos. Para ajudar no cuidado, na criação e educação de uma outra vida – um filho – é necessário isso. A medida desses elementos pode variar, mas a presença desses elementos são essenciais.

Para um jovem homossexual se assumir, ele precisa desses elementos, precisam se sentir amados, aceitos, apoiados, acompanhados, para que não percam suas referências identitárias, para que não se sintam completamente desenraizados e sós, para que não entrem em desespero por ausência de referenciais. Entretanto, isso é um ideal, pois nem toda família é perfeita… Há famílias que não proporcionam a segurança, a aceitação e a confirmação para que se cresça e se saiba quem se é, de onde vem e para onde vai. Nem toda família serve como guia para a vida, e às vezes se precisa construir esses referenciais ao longo do caminho tortuoso da vida, abrindo caminhos no meio da floresta. Esse trabalho solitário pode ser vitorioso, mas deixa marcar profundas nas formas de viver, de amar, de apoiar, de cuidar de si e do outro, nas nossas formas de se construir em casal e família.

Vivemos hoje um mundo cada vez mais marcado pela solidão e pelo individualismo. Esse modo de vida é um sintoma de uma época cada vez mais presente, de uma conjuntura que nos aponta para a falta de raízes, de referências, de vínculos. Isso vale para todos que experimentam um desligar-se da vida em família. Retorna-se a uma vivencia errante anterior à tribo, em que cada um se vê solto nas florestas – de asfalto – lutando pela própria sobrevivência individualmente. A família, idealmente, é o lugar do abrigo e da segurança, da constância, da acolhida. Longe da família, se é estrangeiro.

Assumir-se homossexual é correr o risco de se tornar estrangeiro, de desabrigar-se, de ir para a vida lutar pela própria sobrevivência. Esse risco pode ser extremamente importante para o crescimento e amadurecimento da pessoa, da aquisição de autonomia e exercício da liberdade… e deixa marcas.

Somos marcados na vida pela dialética entre ser individual e coletivo. A família é matriz da sociedade, é a escola onde aprendemos a ser humanos sociabilizados, educados para a convivência. Após um certo momento, somos jogados na vida coletiva para sermos indivíduos, livres e autônomos, em busca de nossa própria realização pessoal, e em busca de um encontro para vir a constituir uma nova família, nova matriz de sociabilidade, retomando o ciclo. Assumir-se homossexual é romper esse ciclo ou estar nele de outra forma, experimentando outros caminhos, criando novas matrizes, reconfigurando a sociedade.

Isso tudo é um ideal, e uma realidade. Assumir-se homossexual é correr o risco de viver outros caminhos e o mesmo caminho. Assume-se não apenas para si, mas para toda a sociedade, começando pela família. Assume-se uma nova forma de ser família, uma nova forma de ser homem e mulher, menino e menina, filho, filha, irmão, irmã… Tudo muda e continua sendo o que se é, numa transformação que nos dirige para o ser nós mesmos. Não podemos ser outra coisa senão nós mesmos e tentar ser outra coisa não é possível, a não ser encenando-se um papel que não nos assenta bem, que nos aperta e nos causa muito sofrimento.

Quem se assume homossexual espera apoio, amor, aceitação e respeito. A família é o primeiro lugar onde se espera isso, pois sempre será o primeiro lugar onde aprendemos a ser nós mesmos. Família que não é a nuclear e biológica, mas que é local de crescimento. Ao longo da vida podemos viver e construir famílias, vivenciar esse sentimento de vinculação e identidade. É o nosso movimento humano de ser e viver em grupo, em comunidade, em coletividade. Não esperamos nada além disso. Viver com o outro, conviver na multiplicidade de quem somos e escolhemos ser em nossos encontros no mundo.

 
Nome: Luiz Fernando Calaça
Bio: Psicólogo, psicoterapeuta, professor substituto do curso de Psicologia da UFBa e aluno especial de Filosofia Contemporânea (UFBa). Membro do UNISEX.